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Opinião: A Cura – Diabetes Mellitus
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Um século após a descoberta da insulina, que impediu a morte prematura de milhões de pessoas em todo o mundo com Diabetes Mellitus, a cura da diabetes não passa de uma miragem. Aliás, a diabetes é mesmo apontada como uma das doenças com mais prevalência no século XXI.
Podemos referir três tipos de diabetes: a diabetes tipo I, a diabetes tipo II e a diabetes gestacional. Todavia, assistimos, frequentemente, e sobretudo na comunicação social, a discursos que não distinguem estes dois tipos principais de diabetes. Convém referir também que as causas de uma e de outra são totalmente diferentes. As causas da diabetes tipo I estão relacionadas com o processo autoimunitário, estão associadas frequentemente à formação genética, e o seu diagnóstico é fundamentalmente realizado na infância. A diabetes tipo II está, usualmente, associada aos estilos de vida pouco saudáveis, a uma alimentação desequilibrada, à falta de exercício físico regular, ao sedentarismo, à obesidade, ao envelhecimento, etc. O diagnóstico ocorre geralmente na vida adulta, mas sobretudo na velhice1.
O nosso corpo é profundamente afetado pelas nossas vivências sociais, pelas normas e pelos valores do meio ao qual pertencemos, e a epidemiologia social procura relacionar a saúde e as suas variáveis: a classe social, o género2, a etnia, a idade e a localização geográfica. Os contextos demográficos das sociedades mais desenvolvidas, com índices elevados de envelhecimento, estilos de vida associados ao sedentarismo e à obesidade, ajudam a compreender estas realidades. Estima se que a diabetes possa afetar cerca de 20% da população nas próximas décadas, sendo que, atualmente, em Portugal, 10% da população é diabética, com maior prevalência nos homens, colocando-se acima da média europeia. De acordo com o relatório de saúde da OCDE em 2014, Portugal foi considerando o país da Europa com maior taxa de prevalência da diabetes3. A diabetes é ainda responsável por 4% das mortes das mulheres e 3% das mortes dos homens.
A diabetes é uma das doenças com maior destaque no século XXI, não só pela sua prevalência, mas também pelos encargos4 que representa para o Serviço Nacional de Saúde – SNS. O tratamento farmacoterapêutico da diabetes para o controlo da hiperglicemia, através dos comprimidos antidiabéticos não insulínicos, representa um encargo para o SNS de 196 milhões de euros. O tratamento farmacoterapêutico através da administração de insulinas representa um encargo para SNS de 67 milhões de euros. Outro exemplo, os encargos com os dispositivos usados no controlo da diabetes, como agulhas, lancetas, tiras e seringas representam 55 milhões euros na despesa do SNS5.
Posto isto, percebe-se que a prevenção está longe de ser o principal objetivo das políticas de saúde para a diabetes, a orientação está definida pelo mercado. Sabemos que a prevenção organizada seria praticamente suficiente para suprimir a existência da diabetes tipo II, e que a diabetes tipo I representa uma pequena percentagem no total da população diabética. Perguntamos, por que razão a prevenção não é o objetivo essencial para controlar a diabetes tipo II? Por que razão não existe um foco na investigação para a descoberta da cura da diabetes tipo I?
As respostas são simples: curar e prevenir as doenças não criam riqueza ao mesmo nível do tratamento, porque o tratamento contribui para o desenvolvimento laboratorial de medicamentos mais eficazes e incentiva o desenvolvimento de novos dispositivos cada vez mais sofisticados e tecnologicamente mais evoluídos, onde cada farmacêutica tem a sua produção e não são compatíveis umas com as outras, nem de utilização universal (agulhas, lancetas, tiras, seringas, bombas infusoras de insulina, etc.). Portanto, são os laboratórios que financiam a investigação e desenvolvem a indústria farmacêutica. O tratamento contribui, portanto, para a criação de postos de trabalho, em todos os níveis, desde o desenvolvimento científico, às linhas de produção, da logística até à comercialização dos produtos, mas, acima de tudo isso e o mais importante, estimula a criação de riqueza através da comercialização dos produtos e da acumulação dos lucros.
Não obstante, a diabetes, quer seja tipo I, quer seja do tipo II, uma vez diagnosticada, consiste numa doença crónica que acarreta repercussões para a vida das pessoas. Neste sentido, de que forma uma doença crónica transforma a vida quotidiana de uma pessoa? E de que modo a diabetes afeta a identidade pessoal e social dessa pessoa? Podemos definir três tipos de trabalhos na doença crónica: o trabalho com a doença, o trabalho quotidiano e o trabalho biográfico6.
O trabalho com a doença diabetes consiste na frequência das consultas e dos exames médicos, diagnósticos de outras situações de doença provocadas pelo descontrolo da diabetes e, consequentemente, as terapias e tratamentos. A gestão diária de uma doença crónica como a diabetes, especialmente a diabetes tipo I, acarreta uma sucessão de tarefas sistemáticas e regulares: a medição da glicemia várias vezes por dia, a colocação das aplicações corporais para medição do açúcar no sangue, a administração da insulina injetável ou por bomba infusora e a ingestão de açúcar se os níveis de açúcar no sangue baixarem. Regularmente, pelo menos três ou quatro vezes por ano, é necessário analisar e controlar a hemoglobina com consultas de especialidade de endocrinologia, mas também gerais ou de outras especialidades, devido aos efeitos colaterais que a diabetes pode provocar, sobretudo, quando não está estável ou controlada.
O trabalho do quotidiano está relacionado com a necessidade de manter e desenvolver o relacionamento social e comunitário, participar ativamente nas tarefas domésticas diárias e prosseguir nos seus/suas interesses pessoais e profissionais. Como também a prática de uma atividade desportiva, sem que isso represente um obstáculo à sua realização, a participação na comunidade e em atividades lúdicas e de lazer. Deste modo, sabemos que a diabetes implica, por exemplo, a necessidade de ausências ao emprego devido às consultas e exames regulares e representa uma sobrecarga de tarefas no seu quotidiano, expostas anteriormente, que dificultam no seu dia a dia.
O trabalho biográfico ou identitário consiste na construção de uma narrativa pessoal, na incorporação e na aceitação da doença para poder explicar aos outros e dar sentido à sua vida. A construção identitária está intrinsecamente associada à doença, pois esta assume um pilar central na sua vida. O planeamento das ações diárias tem forçosamente que ter em linha de conta a diabetes, porque esta define as limitações, influencia as opções que serão tomadas e cria muitas vezes obstáculos com os quais têm de lidar. Por exemplo, o uso de dispositivos diários para medir o açúcar no sangue ou administrar insulina, a colocação de uma bomba infusora, semelhante a um pâncreas artificial, fatores que também podem estigmatizar a pessoa com diabetes.
Nas sociedades atuais, o trabalho é central na organização do quotidiano das pessoas, mas como podemos pedir à população que pratique exercício físico, quando muitas vezes trabalham muito além das oito horas diárias e nem tempo têm para a realização plena e partilhada das tarefas domésticas? Como podemos pedir às pessoas que se alimentem de forma saudável, quando isso tem um custo elevadíssimo?
Nas sociedades utópicas, ou reais, para uma fração da população, o ser humano será o centro da organização da vida quotidiana, a atividade física e desportiva será um dos momentos diários imprescindíveis, assim como os momentos de lazer, haverá também tempo e meios para as atividades culturais e artísticas, para a educação e para formação ao longo da vida. Ainda que seja importantíssimo melhorar a qualidade de vida das pessoas com diabetes, a orientação do desenvolvimento não pode estar exclusivamente entregue à economia, pois cabe ao Estado definir políticas de saúde, a médio e longo prazo, que sejam orientadoras do desenvolvimento científico e que permitam realmente a satisfação das necessidades humanas e sociais.
Joel Fernando Oliveira
Mestre em Sociologia pela Universidade da Beira Interior
1 (DGS) – Direção-Geral da Saúde (2017), “Programa Nacional para a Diabetes”, Lisboa, Edição Ministério da Saúde DGS – Direção-Geral de Saúde
2 GIDDENS, Anthony (2004), Sociologia, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 4ª edição
3 (DGS) – Direção-Geral da Saúde (2016), “A Saúde dos Portugueses 2016”, Lisboa, Edição Ministério da Saúde DGS – Direção-Geral de Saúde
4 (DGS) – Direção-Geral da Saúde (2017), “Programa Nacional para a Diabetes”, Lisboa, Edição Ministério da Saúde DGS – Direção-Geral de Saúde
5 OPSS – Observatório Português dos Sistemas de Saúde (2018), “Meio Caminho Andado, Relatório de Primavera 2018”, Évora, OPSS
6 CORBIN, Juliet e STRAUSS, Anselm (1985), “Managing chronic illness at home: three lines of work”, Qualitative Sociology, Volume 8 n.º 3, pp. 224-247
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